26 de dez. de 2019

Planejamento de arco na prática orquestral: considerações e aplicações em grupos semi-profissionais







Planejamento de arco na prática orquestral: considerações e aplicações em grupos semi-profissionais
Por: Eliseu Ferreira - Universidade Federal de Goiás

Introdução

Um dos aspectos fundamentais da prática orquestral se refere aos naipes das cordas e suas especificidades de execução. Os instrumentos de cordas constituem um grupo essencial na execução do repertório orquestral de qualquer época, e as particularidades técnicas são um foco de preocupação constante por parte de instrumentistas, professores e regentes. A direção, a distribuição, a velocidade, o ponto de contato e o peso do arco, além do golpe de arco empregado, são fatores determinantes na performance musical desse conjunto de instrumentos. Esses aspectos são os que influenciam na sonoridade, na articulação, na dinâmica, na intensidade e no andamento de uma obra musical. Nos concertos a uniformidade desses aspectos no naipe das cordas, além de influenciar positivamente na execução, sempre desperta o interesse da platéia.


Nas orquestras juvenis esses aspectos muitas vezes constituem um problema para instrumentistas e regentes. A formação técnica deficiente de ambas as partes, a falta de instrutores realmente capacitados, aliados aos problemas de ordem estrutural, dificultam as atividades de um bom número de orquestras de jovens em nosso país. Nesses casos, a ausência de uma correta instrução principalmente por parte do regente impede a resolução de muitos problemas referentes à realização do repertório. Muitos desses problemas são encontrados também em algumas orquestras profissionais, reflexo, em muitos casos, das dificuldades vivenciadas nos grupos juvenis. Grande parte das orquestras semi-profissionais em nosso país não contam com uma estrutura adequada de instrutores ou “monitores” em cada um dos naipes das cordas e recursos financeiros para pagamento de professores. Isso faz com que quase sempre as decisões sejam tomadas pelo regente, que, em muitos casos, não toca um instrumento do naipe.




O notável maestro Eleazar de Carvalho (Carvalho apud Ferreira, 1993) dizia que nas
orquestras juvenis deveriam estar os melhores e mais experientes profissionais da regência, pois é lá que o músico vivencia a experiência que será decisiva para a carreira. Mas é notório que isso não ocorre na prática. O que se percebe é que muitos instrumentistas e regentes de coros, sem nenhuma experiência, assumem postos de regência em orquestras e vão aprendendo na prática do dia a dia, com prejuízo para os músicos. Isso decorre da falta de profissionais qualificados e da inexistência de cursos de regência orquestral em grande parte do país.


Outro fator determinante nessa situação diz respeito à escassez de literatura específica
sobre o uso do arco no repertório orquestral, principalmente em língua portuguesa. Trabalhos discutindo o idiomatismo nos instrumentos de cordas friccionadas têm sido publicados nos últimos anos no Brasil a exemplo das abordagens sobre o contrabaixo (Borém, 1995, 2003; Borém, Vieira e Lage, 2003; Ray, 1999, 2001 e 2006) e violino (Tokeshi, 2004). Entretanto, faltam trabalhos abordando o idiomatismo dos instrumentos de cordas do ponto de vista da prática orquestral, tanto dos instrumentistas quando dos regentes. No ano de 1998 foram publicados dois trabalhos científicos que contribuíram para minimizar um pouco a ausência de informação: Mariana Isdebsky Salles e Henrique Autran Dourado. Esses dois notáveis instrumentistas brasileiros abordam em seus trabalhos todos os aspectos relacionados ao arco tais como sua história, terminologia, nomenclaturas em diversos idiomas, “escolas de arco”, etc. Salles chega a propor uma classificação dos golpes de arco com objetivo de padronizar as nomenclaturas e seu correto uso na música brasileira. Em que pese sua importância, esses dois trabalhos abordam os assuntos do ponto de vista do instrumentista.





Com base na experiência adquirida frente a orquestras estudantis, profissionais e semiprofissionais, e tendo como referência teórica os dois autores citados, o objetivo do estudo é refletir sobre os aspectos do uso do arco que são determinantes no resultado final da performance. Aspectos esses que podem ser abordados pelos regentes de orquestras juvenis no momento do ensaio através de instruções simples, mas que podem fazer a diferença na obtenção de resultados satisfatórios.


Aspectos básicos do arco e sua relação com o instrumento

A mão direita do instrumentista de cordas concentra grande parte dos problemas na
execução do repertório orquestral. O arco é a principal ferramenta de trabalho na obtenção da sonoridade. É quase como um segundo instrumento, como diriam alguns. O conhecimento dos processos envolvidos na produção do som deve ser objeto de atenção e estudo por parte dos regentes de orquestras. Em sua formação acadêmica o estudo de um instrumento do naipe das cordas, até o nível de ingressar em uma orquestra, é de fundamental importância para o regente.

Com isso ele poderá desenvolver um trabalho mais eficiente orientando corretamente esse grupo que é considerado a “alma da orquestra”.

Salles (1998) afirma que “marcações de arcadas devem ser feitas exclusivamente pelo
intérprete e/ou spalla. Maestros não devem impor arbitrariamente suas próprias arcadas á orquestra”. Essa concepção ilustra bem o papel do spalla em uma orquestra. Ele deve conhecer as capacidades e as limitações do seu naipe, além de possuir notável preparo técnico e liderança. Em uma orquestra profissional, a marcação de arcos bem como a definição do golpe de arco a ser usado não deve ser objeto de preocupação por parte do regente. Ele deve comunicar suas intenções musicais, a sonoridade desejada. Cabe ao spalla interpretar tecnicamente a intenção e tomar decisões junto aos chefes de naipe das cordas. Mas em muitas situações as orquestras juvenis não contam com spallas e chefes de naipe com capacidades para tomar essas decisões, ou nelas não existe consenso, resultando em problemas no momento da performance. Cremos que, nesses casos a
interferência sábia do maestro poderia ser benéfica para o grupo. Com sua liderança, com amplo conhecimento das intenções musicais da partitura e domínio sobre os aspectos técnicos dos instrumentos, ele poderia instruir corretamente a orquestra, sendo seu argumento fator determinante na tomada de decisões. Esses aspectos técnicos serão analisados a seguir.



O Conceito de Arcada

Salles (1998) define arcada como o “ato de ir e vir, a direção do movimento do arco. Pode
ser para cima, ou seja, começando o movimento na ponta em direção ao talão e indicado com o sinal, ou para baixo, do talão à ponta, indicado com o sinal”. Já Dourado (1999) argumenta que arcada “diz respeito ao conjunto de sinais gráficos, como ligaduras de arco, pontos e sinais de direção que, combinados, representam a maneira de se executar determinado trecho musical”. Salles (1998) argumenta ainda que uma orquestra, na prática, marcar arcada significa definir se cada nota é executada para cima, para baixo, ou ligada. Para efeitos práticos, nesse trabalho adotaremos o conceito de arcada de acordo com esta última concepção.

Em grande parte do repertório os compositores indicam as frases musicais através de
ligaduras, em muitos casos, longas. Essas ligaduras de frase não devem ser confundidas com arcadas. Para definir a quantidade de notas executadas num movimento do arco, bem como o movimento inicial (para cima, ou para baixo) é necessário levar em conta algumas considerações tais como estilo, andamento, dinâmica e intensidade do som, número de instrumentistas por parte, além do nível dos executantes. É necessário também levar em consideração as especificidades do arco de cada instrumento que compõem o naipe. Por exemplo: a quantidade de arco gasta em um determinado trecho musical é muito maior no contrabaixo em relação ao violino. A espessura das cordas do contrabaixo requer mais peso e pressão para a produção do som, consequentemente, há um maior dispêndio do arco.

Uma passagem musical, em andamento lento com intensidade fortíssima exigirá maior
troca da direção do arco, que uma passagem em andamento mais rápido com intensidade em piano. Da mesma forma, notas sustentadas exigirão mais trocas da direção de arco em uma orquestra menos experiente, do que em uma mais experiente, devido ao menor ou maior controle do arco por parte dos executantes. Há que se considerar também em relação à dinâmica que uma arcada começando do talão em direção à ponta produzirá um efeito de crescendo, e que o inverso provocará um decrescendo.

Na verdade, um bom músico precisa ser capaz de efetuar crescendos e decrescendos em ambas as direções. Por fim, salientamos o procedimento que vem sendo praticado há séculos: arcada para baixo no primeiro tempo do compasso, arco para cima nos tempos fracos e nas anacruses.



Peso do arco e peso do braço: uma questão de equilíbrio

Outro fator importante que influencia na obtenção da sonoridade diz respeito ao peso do
arco e do braço. Eles influenciam principalmente na intensidade do som. Uma nota que começa no talão é sensivelmente mais intensa e “pesada” que uma nota que começa na ponta do arco. Isso ocorre devido à lei da gravidade e ao fato de que o peso do arco e do braço é muito maior no talão.

Dessa forma, para sustentar uma nota sem alteração de intensidade usando toda região do arco é necessário equilibrar o peso do arco com o peso do arco. Esse equilíbrio do peso do arco nos violinos e violas é exercido pelos dedos indicador e mínimo. Sendo assim, para se conseguir uma nota com intensidade forte começando no talão, sem o decrescendo natural do arco para baixo, é essencial um incremento da força exercida pelos dedos e pelo braço sobre o arco, à medida que este se aproxima da ponta. Ao contrário, uma nota em intensidade piano começando na ponta sem o natural crescendo, é indispensável diminuir a pressão dos dedos e o peso do braço sobre o arco, à medida que esse se aproxima do talão. Isso é o que ocorre naturalmente, mas, em algumas situações, determinados trechos musicais necessitam que sejam executados contrariando a ordem “natural” expressa acima. Os instrumentistas precisam, então, se empenhar em conseguir igualar os efeitos sonoros conseguidos no talão e na ponta, através do equilíbrio entre o peso do arco e do braço.

Velocidade e peso

A velocidade do arco e o peso empregado no momento da execução exercem um papel
preponderante na qualidade sonora das cordas. Esses dois aspectos, de forma combinada, influenciam na articulação, dinâmica e intensidade sonora, na obtenção de efeitos especiais e na escolha do golpe de arco a ser utilizado.

Articulação: a velocidade do arco é menor no legato e maior nos diferentes tipos de
stacatto (quanto mais curta a nota maior a velocidade). Isso não é uma regra, pois a situação pode se inverter dependendo do contexto musical. O peso do próprio arco e o controle desse peso exercido pelo braço são fatores decisivos nos diversos golpes de arco (estilo).

Dinâmica: a velocidade do arco, bem como a pressão exercida sobre ela “dita” as diversas matizes de intensidade e dinâmica sonora. Quanto mais forte for uma nota, maior a velocidade e peso. Para o crescendo é necessário um aumento gradual da velocidade e do peso, e no decrescendo faz-se o oposto. Para os efeitos de SFZ, FP, e piano súbito, a velocidade e o peso diminuem de forma abrupta.

Efeitos sonoros: na obtenção de um som flautado e de harmônicos, a velocidade do arco é sensivelmente rápida, porém sua pressão sobre a corda é mínima.



Ponto de Contato

O ponto de contato diz respeito ao quadrante do instrumento: o espaço compreendido entre a ponte (cavalete) e o início do espelho. É dentro desse espaço que o arco entra em contato com as cordas. È decisivo em relação à cor sonora e, principalmente, na intensidade do som. Quanto mais próximo do cavalete for o contato do arco com as cordas mais som se obterá. Pode se realizar um crescendo mudando gradativamente o ponto de contato em direção ao cavalete. Tocando mais próximo do espelho, se obterá uma sonoridade menor, mais velada. Obtêm-se também efeitos especiais, principalmente de mudança da cor sonora, mudando o local do contato tais como sulla tastiera (arco posicionado sobre o espelho) e sul ponticello (arco posicionado bem próximo ao cavalete). O primeiro produz um timbre mais doce e suave, ao passo que o segundo produz um som fino, anasalado.

Entende-se também por ponto de contato a região do arco que toca a corda no momento da execução. O arco poderá, para efeito de estudo, se dividir em duas, três ou mais partes. Para simplificar a instrução no momento do ensaio normalmente se refere à divisão em duas ou três partes do arco em expressões como: metade superior, metade inferior, meio, ponta, talão, etc. A região a ser utilizada influência na sonoridade e é determinante para a execução dos vários golpes de arco.

Em um naipe de cordas é importante que exista uma uniformidade em relação a essas
regiões. Certa margem de variação é aceitável, em que pesem as configurações físicas do arco como: tamanho, qualidade e peso da madeira, ponto de equilíbrio, etc.



Principais golpes de arco aplicados ao repertório orquestral

Existe uma grande quantidade de golpes de arco na execução dos instrumentos de cordas.
Alguns deles são específicos para o repertório solo e sua aplicação ao repertório orquestral quando ocorre, é muito rara. Em relação às nomenclaturas, não há um consenso por parte de professores, instrumentistas e maestros, devido às várias “escolas de arco” existentes. Em alguns casos, instruções simples e objetivas do maestro tais como “mais curto”, “menos curto”, “na corda”, “fora da corda”, podem resultar em melhor e mais rápida compreensão por parte dos músicos, tornando a comunicação e o trabalho mais eficiente.
Os golpes mais utilizados, com base na classificação proposta por Salles (1998):

Legato: É uma sucessão de duas ou mais notas numa mesma direção do arco, sem
interrupção do som. Não possui ponto de contato predeterminado, e o maior desafio é combinar digitação, mudança de corda e troca de direção.

Detaché: Golpe mais comum do repertório orquestral, cada nota corresponde a um novo
movimento de arco, de direção contrária ao seu precedente. Pode ser executado com todo o arco ou, como é mais comum, na metade superior, e pode dar origem a outros golpes através do aumento de pressão, forma de ataque e quantidade de arco gasta. Quanto mais rápida a velocidade do movimento musical, menor será a parcela do arco usada.

Portato: Derivado do detaché, situa-se entre o stacatto e o legato. Executado numa única arcada, cada nota é separada uma da outra por uma pausa quase imperceptível.

Martelé: Executado na corda, as notas são separadas por pausas e precedida de um grande acento inicial. Uso mais freqüente na região superior do arco.

Spiccato: Golpes separados um do outro, onde cada nota corresponde a um movimento do arco. Executado de forma que o arco faça o movimento de um semicírculo, partindo fora da corda, tocando-a e abandonando-a, voltando à posição fora da corda. É executado na região onde o arco se equilibra na metade inferior. Indicado para trechos não muito rápidos.

Sautillé: Executado a partir da corda, o arco salta pos si mesmo, sem o controle individual de cada nota. Necessita de andamento rápido para viabilidade de sua execução. Normalmente é executado no meio do arco.

Ricochet: Várias notas executadas numa mesma arcada, para cima ou para baixo, através de um único impulso. O arco salta por si só, em movimento de ricochete. O impulso é dado na primeira nota, quando o arco é jogado na corda.

Conclusão

A partir das reflexões e sugestões acima, apontamos para a necessidade um estudo
aprofundado das questões abordadas. Concluímos que o conhecimento amplo dos aspectos relacionados à técnica dos instrumentos é de suma importância para o planejamento dos arcos e arcadas em uma obra musical. Reafirmamos a importância do assunto para os regentes de orquestras em geral, mas especialmente para aqueles que lidam com orquestras de jovens e estudantes. O maestro deve interferir na tomada de decisões pertinentes a aquilo que pode influenciar positiva ou negativamente em seu trabalho. Ele é o principal responsável pelos resultados obtidos. Em seu trabalho diário, pode contribuir eficazmente para o crescimento técnico e musical de seus músicos, tornando-os aptos a realizarem corretamente suas atividades profissionais.

Referências Bibliográficas
Borém, Fausto. (1995). Contrabaixo para Compositores: Uma Análise de “Pérolas” e “Pepinos”
Selecionadas da Literatura Sinfônica, de Câmara e Solística. In: Anais do VIII Encontro Anual da
ANPPOM. João Pessoa, 1995, p.26 – 33.
__________. (2005). As informações sensoriais (audição, tato e visão) no controle da afinação não-temperada
do contrabaixo acústico. In: Anais do XV Congresso da ANPPOM. Rio de Janeiro, 2005, CD Rom.
Borém, Fausto, M. Vieira, G. M Lage. (2003). O papel das buscas sensoriais exteroceptiva (audição, visão e
tato) e interoceptiva (cinestesia) no controle da afinação não-temperada do contrabaixo acústico:
observações iniciais. In: Anais do XIV Congresso da ANPPOM. Porto Alegre, 2003, CD Rom.
Dourado, Henrique Autran. (1999). O arco dos instrumentos de cordas. São Paulo, Edicon. 2ª ed.
Ferreira, Eliseu. (1993). Apontamentos da palestra ministrada por Eleazar de Carvalho. In: I Festival de
Artes de Itu. Fundação Eleazar de Carvalho, Itu, Julho de 1993.
Salles, Mariana Isdebsky. (1998). Arcadas e golpes de arco. Brasília: Thesaurus.
Ray, Sonia. (1999). A Influência do Baião nas obras Brasileiras eruditas para contrabaixo. In: Encontro da
Associação Nacional de Pesquisa e Pós Graduação em Música. 11. Anais do... Salvador, 1999. CD
Rom.
__________. (2001) Reflexões sobre Movimento para Contrabaixo e Orquestra de Estércio Marquez Cunha. In:
Anais do Encontro da Associação Nacional de Pesquisa e Pós Graduação em Música. 13. Anais
do... Belo Horizonte, 2001. CD Rom.
__________. (2006) Preparação para a performance de Now Here is Nowhere para contrabaixo e suporte fixo:
considerações sobre percepção timbrística e rítmica. In: Encontro Nacional de Cognição e Artes
Musicais, 1. Anais do... Curitiba, 2006. CD Rom.
Tokeshi, Eliane. (2005). Técnica expandida para violino: Classificação e avaliação de seu emprego na
música brasileira. In: Anais do XV Congresso da ANPPOM. Rio de Janeiro, 2005. p.318-323.

Fonte: XVI Congresso da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Música (ANPPOM)
Brasília – 2006


Nenhum comentário:

Postar um comentário

Observação: somente um membro deste blog pode postar um comentário.

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...