Planejamento
de arco na prática orquestral: considerações e aplicações em grupos
semi-profissionais
Por: Eliseu Ferreira - Universidade
Federal de Goiás
Introdução
Um dos
aspectos fundamentais da prática orquestral se refere aos naipes das cordas e
suas especificidades de execução. Os instrumentos de cordas constituem um grupo
essencial na execução do repertório orquestral de qualquer época, e as
particularidades técnicas são um foco de preocupação constante por parte de
instrumentistas, professores e regentes. A direção, a distribuição, a
velocidade, o ponto de contato e o peso do arco, além do golpe de arco
empregado, são fatores determinantes na performance musical desse conjunto de
instrumentos. Esses aspectos são os que influenciam na sonoridade, na articulação,
na dinâmica, na intensidade e no andamento de uma obra musical. Nos concertos a
uniformidade desses aspectos no naipe das cordas, além de influenciar
positivamente na execução, sempre desperta o interesse da platéia.
Nas
orquestras juvenis esses aspectos muitas vezes constituem um problema para instrumentistas
e regentes. A formação técnica deficiente de ambas as partes, a falta de
instrutores realmente capacitados, aliados aos problemas de ordem estrutural,
dificultam as atividades de um bom número de orquestras de jovens em nosso
país. Nesses casos, a ausência de uma correta instrução principalmente por
parte do regente impede a resolução de muitos problemas referentes à realização
do repertório. Muitos desses problemas são encontrados também em algumas
orquestras profissionais, reflexo, em muitos casos, das dificuldades
vivenciadas nos grupos juvenis. Grande parte das orquestras semi-profissionais
em nosso país não contam com uma estrutura adequada de instrutores ou “monitores”
em cada um dos naipes das cordas e recursos financeiros para pagamento de
professores. Isso faz com que quase sempre as decisões sejam tomadas pelo
regente, que, em muitos casos, não toca um instrumento do naipe.
O
notável maestro Eleazar de Carvalho (Carvalho apud Ferreira, 1993) dizia que
nas
orquestras
juvenis deveriam estar os melhores e mais experientes profissionais da
regência, pois é lá que o músico vivencia a experiência que será decisiva para
a carreira. Mas é notório que isso não ocorre na prática. O que se percebe é
que muitos instrumentistas e regentes de coros, sem nenhuma experiência, assumem
postos de regência em orquestras e vão aprendendo na prática do dia a dia, com
prejuízo para os músicos. Isso decorre da falta de profissionais qualificados e
da inexistência de cursos de regência orquestral em grande parte do país.
Outro
fator determinante nessa situação diz respeito à escassez de literatura
específica
sobre
o uso do arco no repertório orquestral, principalmente em língua portuguesa.
Trabalhos discutindo o idiomatismo nos instrumentos de cordas friccionadas têm
sido publicados nos últimos anos no Brasil a exemplo das abordagens sobre o
contrabaixo (Borém, 1995, 2003; Borém, Vieira e Lage, 2003; Ray, 1999, 2001 e
2006) e violino (Tokeshi, 2004). Entretanto, faltam trabalhos abordando o
idiomatismo dos instrumentos de cordas do ponto de vista da prática orquestral,
tanto dos instrumentistas quando dos regentes. No ano de 1998 foram publicados
dois trabalhos científicos que contribuíram para minimizar um pouco a ausência
de informação: Mariana Isdebsky Salles e Henrique Autran Dourado. Esses dois
notáveis instrumentistas brasileiros abordam em seus trabalhos todos os aspectos
relacionados ao arco tais como sua história, terminologia, nomenclaturas em
diversos idiomas, “escolas de arco”, etc. Salles chega a propor uma
classificação dos golpes de arco com objetivo de padronizar as nomenclaturas e
seu correto uso na música brasileira. Em que pese sua importância, esses dois
trabalhos abordam os assuntos do ponto de vista do instrumentista.
Com
base na experiência adquirida frente a orquestras estudantis, profissionais e
semiprofissionais, e tendo como referência teórica os dois autores citados, o
objetivo do estudo é refletir sobre os aspectos do uso do arco que são
determinantes no resultado final da performance. Aspectos esses que podem ser
abordados pelos regentes de orquestras juvenis no momento do ensaio através de
instruções simples, mas que podem fazer a diferença na obtenção de resultados
satisfatórios.
Aspectos
básicos do arco e sua relação com o instrumento
A mão
direita do instrumentista de cordas concentra grande parte dos problemas na
execução
do repertório orquestral. O arco é a principal ferramenta de trabalho na
obtenção da sonoridade. É quase como um segundo instrumento, como diriam
alguns. O conhecimento dos processos envolvidos na produção do som deve ser
objeto de atenção e estudo por parte dos regentes de orquestras. Em sua
formação acadêmica o estudo de um instrumento do naipe das cordas, até o nível
de ingressar em uma orquestra, é de fundamental importância para o regente.
Com
isso ele poderá desenvolver um trabalho mais eficiente orientando corretamente
esse grupo que é considerado a “alma da orquestra”.
Salles
(1998) afirma que “marcações de arcadas devem ser feitas exclusivamente pelo
intérprete
e/ou spalla. Maestros não devem impor arbitrariamente suas próprias arcadas á orquestra”.
Essa concepção ilustra bem o papel do spalla em uma orquestra. Ele deve
conhecer as capacidades e as limitações do seu naipe, além de possuir notável
preparo técnico e liderança. Em uma orquestra profissional, a marcação de arcos
bem como a definição do golpe de arco a ser usado não deve ser objeto de
preocupação por parte do regente. Ele deve comunicar suas intenções musicais, a
sonoridade desejada. Cabe ao spalla interpretar tecnicamente a intenção e tomar
decisões junto aos chefes de naipe das cordas. Mas em muitas situações as
orquestras juvenis não contam com spallas e chefes de naipe com capacidades
para tomar essas decisões, ou nelas não existe consenso, resultando em
problemas no momento da performance. Cremos que, nesses casos a
interferência
sábia do maestro poderia ser benéfica para o grupo. Com sua liderança, com
amplo conhecimento das intenções musicais da partitura e domínio sobre os
aspectos técnicos dos instrumentos, ele poderia instruir corretamente a
orquestra, sendo seu argumento fator determinante na tomada de decisões. Esses
aspectos técnicos serão analisados a seguir.
O Conceito de Arcada
Salles
(1998) define arcada como o “ato de ir e vir, a direção do movimento do arco.
Pode
ser
para cima, ou seja, começando o movimento na ponta em direção ao talão e
indicado com o sinal, ou para baixo, do talão à ponta, indicado com o sinal”.
Já Dourado (1999) argumenta que arcada “diz respeito ao conjunto de sinais
gráficos, como ligaduras de arco, pontos e sinais de direção que, combinados,
representam a maneira de se executar determinado trecho musical”. Salles (1998)
argumenta ainda que uma orquestra, na prática, marcar arcada significa definir
se cada nota é executada para cima, para baixo, ou ligada. Para efeitos
práticos, nesse trabalho adotaremos o conceito de arcada de acordo com esta
última concepção.
Em
grande parte do repertório os compositores indicam as frases musicais através
de
ligaduras,
em muitos casos, longas. Essas ligaduras de frase não devem ser confundidas com
arcadas. Para definir a quantidade de notas executadas num movimento do arco,
bem como o movimento inicial (para cima, ou para baixo) é necessário levar em
conta algumas considerações tais como estilo, andamento, dinâmica e intensidade
do som, número de instrumentistas por parte, além do nível dos executantes. É
necessário também levar em consideração as especificidades do arco de cada
instrumento que compõem o naipe. Por exemplo: a quantidade de arco gasta em um
determinado trecho musical é muito maior no contrabaixo em relação ao violino.
A espessura das cordas do contrabaixo requer mais peso e pressão para a produção
do som, consequentemente, há um maior dispêndio do arco.
Uma
passagem musical, em andamento lento com intensidade fortíssima exigirá maior
troca
da direção do arco, que uma passagem em andamento mais rápido com intensidade
em piano. Da mesma forma, notas sustentadas exigirão mais trocas da direção de
arco em uma orquestra menos experiente, do que em uma mais experiente, devido
ao menor ou maior controle do arco por parte dos executantes. Há que se considerar
também em relação à dinâmica que uma arcada começando do talão em direção à
ponta produzirá um efeito de crescendo, e que o inverso provocará um decrescendo.
Na
verdade, um bom músico precisa ser capaz de efetuar crescendos e decrescendos
em ambas as direções. Por fim, salientamos o procedimento que vem sendo
praticado há séculos: arcada para baixo no primeiro tempo do compasso, arco
para cima nos tempos fracos e nas anacruses.
Peso do arco e peso do braço:
uma questão de equilíbrio
Outro
fator importante que influencia na obtenção da sonoridade diz respeito ao peso
do
arco e
do braço. Eles influenciam principalmente na intensidade do som. Uma nota que
começa no talão é sensivelmente mais intensa e “pesada” que uma nota que começa
na ponta do arco. Isso ocorre devido à lei da gravidade e ao fato de que o peso
do arco e do braço é muito maior no talão.
Dessa
forma, para sustentar uma nota sem alteração de intensidade usando toda região
do arco é necessário equilibrar o peso do arco com o peso do arco. Esse
equilíbrio do peso do arco nos violinos e violas é exercido pelos dedos
indicador e mínimo. Sendo assim, para se conseguir uma nota com intensidade
forte começando no talão, sem o decrescendo natural do arco para baixo, é essencial
um incremento da força exercida pelos dedos e pelo braço sobre o arco, à medida
que este se aproxima da ponta. Ao contrário, uma nota em intensidade piano
começando na ponta sem o natural crescendo, é indispensável diminuir a pressão
dos dedos e o peso do braço sobre o arco, à medida que esse se aproxima do
talão. Isso é o que ocorre naturalmente, mas, em algumas situações,
determinados trechos musicais necessitam que sejam executados contrariando a
ordem “natural” expressa acima. Os instrumentistas precisam, então, se empenhar
em conseguir igualar os efeitos sonoros conseguidos no talão e na ponta,
através do equilíbrio entre o peso do arco e do braço.
Velocidade e peso
A
velocidade do arco e o peso empregado no momento da execução exercem um papel
preponderante
na qualidade sonora das cordas. Esses dois aspectos, de forma combinada, influenciam
na articulação, dinâmica e intensidade sonora, na obtenção de efeitos especiais
e na escolha do golpe de arco a ser utilizado.
Articulação: a
velocidade do arco é menor no legato e maior nos diferentes tipos de
stacatto
(quanto mais curta a nota maior a velocidade). Isso não é uma
regra, pois a situação pode se inverter dependendo do contexto musical. O peso
do próprio arco e o controle desse peso exercido pelo braço são fatores
decisivos nos diversos golpes de arco (estilo).
Dinâmica: a
velocidade do arco, bem como a pressão exercida sobre ela “dita” as diversas matizes
de intensidade e dinâmica sonora. Quanto mais forte for uma nota, maior a
velocidade e peso. Para o crescendo é necessário um aumento gradual da
velocidade e do peso, e no decrescendo faz-se o oposto. Para os efeitos de SFZ,
FP, e piano súbito, a velocidade e o peso diminuem de forma abrupta.
Efeitos
sonoros: na obtenção de um som flautado e de harmônicos, a velocidade do
arco é sensivelmente rápida, porém sua pressão sobre a corda é mínima.
Ponto de Contato
O
ponto de contato diz respeito ao quadrante do instrumento: o espaço
compreendido entre a ponte (cavalete) e o início do espelho. É dentro desse
espaço que o arco entra em contato com as cordas. È decisivo em relação à cor
sonora e, principalmente, na intensidade do som. Quanto mais próximo do
cavalete for o contato do arco com as cordas mais som se obterá. Pode se
realizar um crescendo mudando gradativamente o ponto de contato em direção ao
cavalete. Tocando mais próximo do espelho, se obterá uma sonoridade menor, mais
velada. Obtêm-se também efeitos especiais, principalmente de mudança da cor
sonora, mudando o local do contato tais como sulla tastiera (arco
posicionado sobre o espelho) e sul ponticello (arco posicionado bem próximo
ao cavalete). O primeiro produz um timbre mais doce e suave, ao passo que o
segundo produz um som fino, anasalado.
Entende-se
também por ponto de contato a região do arco que toca a corda no momento da execução.
O arco poderá, para efeito de estudo, se dividir em duas, três ou mais partes.
Para simplificar a instrução no momento do ensaio normalmente se refere à
divisão em duas ou três partes do arco em expressões como: metade superior,
metade inferior, meio, ponta, talão, etc. A região a ser utilizada influência
na sonoridade e é determinante para a execução dos vários golpes de arco.
Em um
naipe de cordas é importante que exista uma uniformidade em relação a essas
regiões.
Certa margem de variação é aceitável, em que pesem as configurações físicas do
arco como: tamanho, qualidade e peso da madeira, ponto de equilíbrio, etc.
Principais
golpes de arco aplicados ao repertório orquestral
Existe
uma grande quantidade de golpes de arco na execução dos instrumentos de cordas.
Alguns
deles são específicos para o repertório solo e sua aplicação ao repertório
orquestral quando ocorre, é muito rara. Em relação às nomenclaturas, não há um
consenso por parte de professores, instrumentistas e maestros, devido às várias
“escolas de arco” existentes. Em alguns casos, instruções simples e objetivas
do maestro tais como “mais curto”, “menos curto”, “na corda”, “fora da corda”,
podem resultar em melhor e mais rápida compreensão por parte dos músicos,
tornando a comunicação e o trabalho mais eficiente.
Os
golpes mais utilizados, com base na classificação proposta por Salles (1998):
Legato: É uma
sucessão de duas ou mais notas numa mesma direção do arco, sem
interrupção
do som. Não possui ponto de contato predeterminado, e o maior desafio é
combinar digitação, mudança de corda e troca de direção.
Detaché:
Golpe mais comum do repertório orquestral, cada nota corresponde a um novo
movimento
de arco, de direção contrária ao seu precedente. Pode ser executado com todo o
arco ou, como é mais comum, na metade superior, e pode dar origem a outros
golpes através do aumento de pressão, forma de ataque e quantidade de arco
gasta. Quanto mais rápida a velocidade do movimento musical, menor será a
parcela do arco usada.
Portato:
Derivado do detaché, situa-se entre o stacatto e o legato. Executado numa única
arcada, cada nota é separada uma da outra por uma pausa quase imperceptível.
Martelé:
Executado na corda, as notas são separadas por pausas e precedida de um grande acento
inicial. Uso mais freqüente na região superior do arco.
Spiccato:
Golpes separados um do outro, onde cada nota corresponde a um movimento do arco.
Executado de forma que o arco faça o movimento de um semicírculo, partindo fora
da corda, tocando-a e abandonando-a, voltando à posição fora da corda. É
executado na região onde o arco se equilibra na metade inferior. Indicado para
trechos não muito rápidos.
Sautillé:
Executado a partir da corda, o arco salta pos si mesmo, sem o controle
individual de cada nota. Necessita de andamento rápido para viabilidade de sua
execução. Normalmente é executado no meio do arco.
Ricochet: Várias
notas executadas numa mesma arcada, para cima ou para baixo, através de um
único impulso. O arco salta por si só, em movimento de ricochete. O impulso é
dado na primeira nota, quando o arco é jogado na corda.
Conclusão
A partir
das reflexões e sugestões acima, apontamos para a necessidade um estudo
aprofundado
das questões abordadas. Concluímos que o conhecimento amplo dos aspectos relacionados
à técnica dos instrumentos é de suma importância para o planejamento dos arcos
e arcadas em uma obra musical. Reafirmamos a importância do assunto para os
regentes de orquestras em geral, mas especialmente para aqueles que lidam com
orquestras de jovens e estudantes. O maestro deve interferir na tomada de
decisões pertinentes a aquilo que pode influenciar positiva ou negativamente em
seu trabalho. Ele é o principal responsável pelos resultados obtidos. Em seu
trabalho diário, pode contribuir eficazmente para o crescimento técnico e
musical de seus músicos, tornando-os aptos a realizarem corretamente suas
atividades profissionais.
Referências
Bibliográficas
Borém, Fausto. (1995). Contrabaixo para
Compositores: Uma Análise de “Pérolas” e “Pepinos”
Selecionadas da
Literatura Sinfônica, de Câmara e Solística. In: Anais do VIII Encontro Anual da
ANPPOM. João Pessoa, 1995,
p.26 – 33.
__________. (2005). As
informações sensoriais (audição, tato e visão) no controle da afinação
não-temperada
do contrabaixo acústico. In: Anais do XV
Congresso da ANPPOM. Rio de Janeiro, 2005, CD Rom.
Borém, Fausto, M. Vieira, G. M Lage.
(2003). O papel das buscas sensoriais exteroceptiva (audição, visão e
tato) e interoceptiva
(cinestesia) no controle da afinação não-temperada do contrabaixo acústico:
observações iniciais. In: Anais do XIV
Congresso da ANPPOM. Porto Alegre, 2003, CD Rom.
Dourado, Henrique Autran. (1999). O
arco dos instrumentos de cordas. São Paulo, Edicon. 2ª ed.
Ferreira, Eliseu. (1993). Apontamentos
da palestra ministrada por Eleazar de Carvalho. In: I Festival de
Artes de Itu. Fundação Eleazar de
Carvalho, Itu, Julho de 1993.
Salles, Mariana Isdebsky. (1998). Arcadas
e golpes de arco. Brasília: Thesaurus.
Ray, Sonia. (1999). A Influência do
Baião nas obras Brasileiras eruditas para contrabaixo. In: Encontro da
Associação Nacional de
Pesquisa e Pós Graduação em Música. 11. Anais do... Salvador, 1999. CD
Rom.
__________. (2001) Reflexões
sobre Movimento para Contrabaixo e Orquestra de Estércio Marquez Cunha. In:
Anais do Encontro da
Associação Nacional de Pesquisa e Pós Graduação em Música. 13. Anais
do... Belo Horizonte, 2001. CD Rom.
__________. (2006) Preparação
para a performance de Now Here is Nowhere para contrabaixo e suporte fixo:
considerações sobre
percepção timbrística e rítmica. In: Encontro Nacional de Cognição e Artes
Musicais, 1. Anais do...
Curitiba, 2006. CD Rom.
Tokeshi, Eliane. (2005). Técnica
expandida para violino: Classificação e avaliação de seu emprego na
música brasileira. In: Anais do XV Congresso da ANPPOM. Rio de Janeiro,
2005. p.318-323.
Fonte: XVI Congresso da Associação
Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Música (ANPPOM)
Brasília – 2006
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Observação: somente um membro deste blog pode postar um comentário.