Socióloga pesquisa a formação profissional
e a inserção no mercado dos músicos de orquestra
e a inserção no mercado dos músicos de orquestra
Segundo o teórico francês Bernard Lehmann, por trás da unicidade atribuída pela vestimenta preta a uma orquestra sinfônica, existe um universo repleto de contradições. Nada mais verdadeiro, na opinião da socióloga Dilma Fabri Marão Pinocheri, que freqüentou o dia-a-dia da Orquestra Sinfônica do Teatro Municipal de São Paulo por dois anos (2004-2005), colhendo informações e depoimentos sobre a formação profissional e a inserção desses músicos no mercado de trabalho. Antes, ela havia participado do projeto governamental para a Classificação Brasileira de Ocupações (CBO), que diante das profundas transformações no capitalismo visou re-descrever todas as ocupações existentes no país. Este projeto contou com importante contribuição da Unicamp.
Um estudo do dia-a-dia da Sinfônica do TeatroMunicipal
“Músicos não são apenas artistas, mas também trabalhadores; são artistas-trabalhadores”, define a socióloga, cuja pesquisa resultou em dissertação de mestrado orientada pela professora Liliana Segnini, da Faculdade de Educação (FE). “Trata-se de uma temática nova, pois a sociologia do trabalho no Brasil sempre esteve muito focada nos setores de produção e de serviços”, acrescenta. Aquele trabalho para a CBO levou a professora Liliana Segnini a coordenar um projeto temático aprovado pela Fapesp, “Trabalho e formação no campo da cultura: professores, músicos e bailarinos”, que vai até 2007. A dissertação de Dilma Marão está inserida neste projeto.
A socióloga encontrou o Teatro Municipal em momento difícil, dependente da dotação orçamentária da Secretaria de Cultura e sem realizar concursos públicos para efetivação de músicos e bailarinos havia mais de 10 anos. “Dentro da nossa metodologia, a pesquisa deveria ser iniciada com os músicos estáveis, efetivados dentro das orquestras, para no segundo momento ouvir os músicos autônomos. Mas os chamados trabalhadores precários já estavam na orquestra, sujeitos a contratos temporários de três ou seis meses, sem qualquer tipo de seguridade”, afirma Dilma Marão. Na época, a orquestra mantinha um corpo estável com 115 músicos – número que varia de acordo com a complexidade da obra interpretada –, sendo apenas 40% contratados.
Sem acesso a informações oficiais, a socióloga estima, por ouvir falar, que o salário médio na orquestra vai de R$ 4,5 mil a R$ 5 mil reais, existindo diferenças dentro da estrutura bastante hierarquizada composta por maestro, solistas, concertinos e tuttistas. Dentro do naipe (grupo que toca o mesmo instrumento) de violinos, por exemplo, temos o spalla (primeiro violinista, que eventualmente substitui o regente), o concertino (que fica ao lado do spalla e pode substitui-lo em caso de necessidade) e os tuttistas (que compõem o som integral da orquestra).
“Os salários dos músicos efetivos e dos temporários se equivalem. Mas se aos temporários não são garantidos direitos trabalhistas, os funcionários públicos têm um salário base em torno de mil reais, sobre o qual são incorporados adicionais que eles perderão na aposentadoria”, explica Dilma Marão. A pesquisadora foi testemunha da insegurança dos músicos não efetivados quando mudou o governo, com a saída de Marta Suplicy e a entrada de José Serra. “Não houve grandes transformações no corpo da orquestra, mas foi um momento muito angustiante”, recorda.
As mulheres – Preocupada também com aspectos de gênero, a socióloga teve sua atenção despertada para os problemas das mulheres – 26% do corpo da orquestra –, particularmente daquelas que não estão protegidas pela seguridade e que engravidam. “Elas tocam até o nono mês de gravidez, acompanhando óperas de cinco horas de duração dentro do fosso [espaço reservado à orquestra em nível inferior ao palco]. O maestro finge que não vê e a mulher finge que não está grávida. O sacrifício faz parte de um esquema de companheirismo, pois os colegas ocuparão seus lugares quando forem ter o nenê. Só assim é possível ficar grávida ou adoecer no espaço do teatro”, observa.
A questão do espaço é um agravante nas condições de trabalho. Dilma Marão lembra que o Teatro Municipal, inaugurado em 1911, não foi criado com o propósito de abrigar corpos estáveis, mesmo que hoje lá estejam a Sinfônica, uma orquestra experimental, dois corais, o balé da cidade, um quarteto de cordas e escolas de música e bailado. “O teatro foi concebido para receber grandes companhias da Europa, o que cria problemas na organização do trabalho de todos os corpos. Não existe, por exemplo, locais para ensaios de naipes. Os músicos trocam de roupa no fosso, onde também guardam instrumentos que custam alguns milhares de dólares. A poeira pode causar problemas respiratórios, o que é grave para os músicos de sopro”, aponta.
A formação profissional e o cachê
A socióloga Dilma Marão explica que a formação profissional do músico possui características universais, como idades adequadas para início do aprendizado: o violonista com pretensões de se tornar profissional deve começar aos 5 ou 6 anos de idade, inclusive para adquirir a capacidade física de tocar o instrumento; mas há instrumentos que permitem o aprendizado mais tardio, visto que é impossível à criança tocar um contrabaixo, por exemplo. Outra característica universal é a presença da família, base da carreira dos músicos no Brasil e no mundo. “A grande maioria tem como maiores incentivadores os pais ou parentes também músicos”, afirma.
Ocorre que no Brasil a família também precisa patrocinar os estudos do filho, o que denuncia uma total omissão do Estado na formação de seus músicos. Em países do Leste Europeu, como a Bulgária, os ensinos fundamental e médio têm suas escolas especializadas em música, que oferecem as disciplinas normais em um período e, no outro, somente música. A França possui seus respeitados conservatórios públicos. “É impensável a profissionalização do músico francês em conservatório particular. No Brasil, ao contrário, temos uma maioria de instituições privadas, estando entre os conservatórios de Tatuí e de Piracicaba os mais procurados”, observa Dilma Marão.
Na Orquestra Sinfônica do Teatro Municipal de São Paulo, a socióloga entrevistou apenas um músico que se disse incentivado para a prática no ensino fundamental. “O ensino de música é obrigatório, dentro da disciplina de educação artística, mas há fortes controvérsias entre os próprios professores, obrigados a dar conta também da dança e das artes plásticas sem que tenham formação para tudo isso. Ensinar a cantar não é ensinar música, muito menos incentivar à formação profissional como nas escolas da Bulgária”, critica Dilma Marão. Em sua opinião, a igreja exerce papel bem mais importante nesse sentido, principalmente as evangélicas, onde a música é historicamente incentivada.
O professor particular é outra figura obrigatória no Brasil, presente em todas as etapas de formação dos músicos, inclusive quando eles se encontram no conservatório, na universidade ou com bolsa no exterior. “Esta relação mestre-aprendiz vem de muito tempo. É comum o músico procurar o ensino superior interessado na teoria ou mesmo para apreender outro instrumento. O seu verdadeiro instrumento, porém, ele aperfeiçoa com o professor particular”, enfatiza a pesquisadora. Via de regra, o professor particular é um nome ilustre, que estará no topo de todo currículo, seguindo os cursos de especialização e mesmo a universidade. “Os músicos relativizam a importância do ensino superior em sua formação, mesmo porque muitos deles, ao chegar à universidade com 17 ou 18 anos, já atuam profissionalmente. Não raramente, buscam o diploma para exercer outra atividade no mercado de trabalho, como a de professor nas próprias universidades”, explica.
Sobrevivência – A formação profissional e a inserção no mercado de trabalho dos músicos brasileiros são aspectos muito associados, o que tem um lado bom e outro ruim, na opinião de Dilma Marão. “O músico, enquanto trabalhador, vive de tocar. No final da adolescência ele já atua na sinfônica, dá aulas particulares, é chamado por gravadoras, monta grupos para ‘fazer cachê’ em casamentos, batizados e outros eventos. Por outro lado, a formação fica prejudicada por essas alternativas precárias de trabalho, quando o ideal seria que o músico investisse no aprendizado até os 25 anos de idade, a fim de entrar qualificado no mercado”, constata.
Tantas atividades resultam em vícios – técnicos e outros. Dilma Marão colheu o triste depoimento de um solista, criança prodígio que aprendeu a tocar tudo o que colocaram à sua mão. Aos 17 anos já estava na sinfônica e acompanhava artistas internacionais. “Para um adolescente, o sucesso é perigoso. Ele começou a frequentar festas, bares e acabou tendo problemas com a bebida. Em pleno concerto no Teatro Municipal, sofreu uma pane e não conseguiu mais tocar. Por causa dessa única falha, deixou de ser o primeiro solista e de receber convites. O glamour da profissão artística é outro aspecto que deve ser trabalhado”, pondera.
Envelhecer na profissão é outra questão complicada. O músico de sopro, por exemplo, já não terá a mesma capacidade respiratória dos 20 anos. A propósito, Dilma Marão cita outro teórico, Pierre-Michel Menger, para quem as profissões artísticas talvez estejam na vanguarda das transformações recentes do capitalismo. “É comum ver a flexibilização das relações de trabalho quando se trata de profissão não-qualificada, em que o trabalhador pode ser facilmente substituído. No mundo artístico são profissionais muito qualificados, que se qualificam a vida inteira, e que mesmo assim são substituídos com relativa facilidade”.
fonte: jornal da unicamp -http://www.unicamp.br/unicamp/unicamp_hoje/ju/maio2006/ju323pag12.html
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