29 de dez. de 2011

A moderna escola de violino cultivada no Conservatório de Paris do século XVIII


A moderna escola de violino cultivada no Conservatório de Paris do século XVIII



O final do século XVIII teve a produção musical polarizada em Viena e Paris, que mantiveram contínuo contato artístico. Enquanto a escola austríaca era centrada em compositores mais ligados ao piano, como Haydn, Mozart, Beethoven, Schubert, entre outros, a escola francesa agrupou-se em violinistas descendentes da antiga escola de Gaviniés, Lully e Rebel fundida com a tradição de Corelli e Tartini .
O mérito desta conexão das escolas francesa e italiana é de Giovanni Battista
Viotti (1755-1824), discípulo de Pugnani, ao lado do qual iniciou brilhante carreira internacional como concertista. Conquistou a admiração instantânea dos franceses após um ano e meio de concertos em Paris em 1782, quando inexplicavalmente decidiu se aposentar do palco. A partir do início de 1784, Marie Antoinette ofereceu-lhe generosa pensão em Versailles para conduzir diversas orquestras e ensinar a arte do violino. Quando a Revolução
o forçou a se mudar para Londres em 1792, já tinha formado um grupo de violinistas talentosos e idealistas que fundariam o Conservatório de Paris. Por isso, Viotti é considerado o pai da moderna escola francesa de violino. Ele acrescentou seu gênio pessoal aos ensinamentos de Pugnani, desenvolvendo um novo estilo que aproveitava todas as qualidades do novo arco Tourte e dos melhoramentos externos do violino: cordas mais grossas, braço mais comprido e anguloso, barra harmônica e alma mais grossas, desenho diferente do
cavalete.


O Conservatório de Paris foi fundado no dia 18 de brumário do ano II (8 de
novembro de 1793), em substituição à denominação "Instituto nacional de música" de 1792 sob inspiração de ideais gregos e romanos, objetivando o ensino público e gratuito de música e também exaltando a arte musical militar de Paris. O Conservatório de Paris reuniu importantes alunos diretos de Viotti em seu corpo docente, principalmente Rode e Kreutzer, entre dezenas de outros menos expressivos. Liderados por Baillot, os três publicaram um método de violino em 1802 que incorporou os recursos técnicos em uso atualmente. Aquele método foi rapidamente difundido pela Europa, formando violinistas bem sucedidos em vários países. Os violinistas franceses eram, também, autores do próprio repertório, incluindo significativo número de concertos para violino e orquestra, muita literatura solo e também música de câmara. A partir do século XIX, conhecemos vários estudos e álbuns para violino solo publicados pelos violinistas compositores franceses do Conservatório de Paris, bem como os famosos Caprichos de Paganini, formando um conjunto
de obras que marcam os estudos pessoais de muitos violinistas.
Pierre Marie François de Sales Baillot (1771-1842) foi violinista e compositor
parisiense. Em 1783, devido à morte de seu pai, foi enviado à Roma por M. de Boucheporn para estudar violino com Pollani, aluno de Pietro Nardini (1722-1793). Em 1791, iniciou a carreira em Paris com ajuda de Viotti e formando amizade estreita com Rode. Estudou composição com Catel, Reicha e Cherubini. Após apresentar um concerto de Viotti, conquistou um cargo de docência temporária no recém fundado Conservatório de Paris em 1795, assumindo oficialmente em 1799. Depois disso, foi bem sucedido em turnés pela Europa e Rússia. Liderou a Orquestra da Ópera de Paris entre 1821 e 1831. Também liderou a orquestra da Chapelle Royale a partir de 1825. Ele é responsável pela redescoberta da música antiga, principalmente de J.S.Bach, Barbella, Corelli, Germiniani, Handel e Tartini. Baillot foi o grande incentivador da introdução da música de câmara no currículo do Conservatório de Paris. No entanto, ele não conseguiu isso pessoalmente, mas somente por meio de seu filho René, que inaugurou a catédra de música de câmara em 1848. Antes disso, o gosto musical parisiense preferia a ópera, as apresentações virtuosísticas e orquestrais. Mesmo nas formações de quarteto, o primeiro violino geralmente tocava em pé para destacar-se do restante do grupo.


O método de violino elaborado por Baillot, Rode e Kreutzer em 1802 para uso no Conservatório de Paris serviu de modelo para outros conservatórios; um ótimo exemplo é a tradução ao italiano dedicada a Alessandro Rolla (1757-1841), compositor, violinista, violista, regente e fundador do Conservatório em Milão em 1808, que provavelmente utilizou o bem sucedido método da instituição francesa em suas aulas de violino e viola (ROSTAGNO, 2001). Rolla é conhecido por ter encaminhado Paganini (1782-1840) ao professor Gaspare Ghiretti em 1795 em Parma.
O método de violino do Conservatório exalta a antiguidade do instrumento, o
caráter divino do seu som e todos os recursos técnicos e artísticos que o violino consegue mostrar. Logo em sua introdução, o método incentiva a perseverança do aluno a desenvolver sua sensibilidade e entendimento; recomenda a formação do bom gosto pela busca diária da perfeição ideal pelo artista dotado de um espírito reto e imaginação ardente; adota a regra de que o verdadeiramente belo é tudo que toca o coração; adverte, no artigo VII, que não adianta meramente segurar corretamente o violino e o arco, mas que o corpo deve ter uma atidude nobre e harmoniosa que favoreça o  desenvolvimento de todos os meios musicais. Contudo, nota-se um amadurecimento em Baillot após mais de quatro décadas de docência, quando finalmente considerou que "beleza torna-se sinônimo de bom para o artista", o que se aproxima muito da definição aristotélica-tomista de que a beleza é
expressão inteligível do bem.


O método do Conservatório de Paris propõe vários tipos de ideais (na maioria
ideais artísticos), principalmente pelos exercícios que favorecem o desenvolvimento de um som forte, limpo e uniforme do talão até a ponta do arco. Para isso, sugere exercitar a produção sonora de três maneiras:

1)sustentar o som com toda a força: os dedos da mão direita devem contribuir na compensação da pressão do arco sobre a corda à medida que o ponto de apoio sobre a corda se desloca.

2) buscar um som fraco: sustentando o arco levemente sobre a corda,
abandonando-o à medida que se chega à ponta.

3) crescer, diminuir e modificar o som.

Estes itens não são óbvios quando confrontados com a escola antiga. Os dois
primeiros itens favorecem o bom desenvolvimento da musculatura da mão direita. Entretanto, o método apenas define a gradação de som como sendo a gradação de força, mas nada revela a respeito do equilíbrio do ponto de contato e da velocidade do arco sobre a corda.
Certamente, o método não serve para auto aprendizagem, nem foi feito para esta finalidade: requer supervisão e explicações do professor. Baillot foi muito respeitado pelo domínio técnico geral, fato que não o salvou de críticas de Spohr: ao mesmo tempo em que exaltava sua execução impecável, reclamava que "o mecanismo da mudança de arcada era de algum modo muito audível".



Depois de algumas décadas lecionando, Baillot escreveu seu maduro tratado sobre a arte do violino, que incorpora o método do Conservatório de Paris (principalmente na segunda parte do livro). Seu ensino baseou-se em três etapas:
1) a instrução da definição com exemplo do professor,
2) propostas de exercícios técnicos resumidos em fórmulas,
3) por último, a aplicação de todos os princípios no repertório do Conservatório
de Paris.
Lefort e Pincherle, salientam a proposta de grande abertura
metodológica de Baillot, fato que costuma ser modernamente olvidado em salas de aula: "Nós trabalhamos na boa-fé de impedir os estudantes confiados aos nossos cuidados a se tornarem prisioneiros de uma escola, procurando dar à própria escola a maior extensão possível e a deixar aos alunos a maior liberdade de desenvolvimento." Além da profunda abordagem da técnica violinística e de vários assuntos correlacionados, o tratado de Baillot mostra um
enorme esforço de padronização da notação musical e violinística, no qual ele lembra que a técnica está a serviço da arte. A expressão consiste em realizar com energia todas as ideias e sentimentos que se quer manifestar. No violino, a verdadeira expressão depende:
1) da qualidade do som;
2) do movimento, referindo-se ao andamento da música;
3) do estilo, referindo-se à maneira de exprimir;
4) do bom gosto: é ao mesmo tempo um dom da natureza e fruto da educação;
5) da precisão rítmica: fundamental, apesar de que alterações na pulsação possam ser necessárias para a expressão.
6) do gênio de execução: saber mostrar o diálogo entre os instrumentos e a
expressão de cada parte da música.
Apesar do sistema de conservatórios ter-se originado na Idade Média, a criação do Conservatório de Paris tinha como propósito mais do que preparar alunos: unir, em um só corpo de princípios, as bases de todos os diversos ramos de instrução, aproximando-se à definição de escola usada neste estudo. Um dos primeiros a identificar na consolidação dos ideais do Conservatório de Paris um paradigma moderno foi Wieniawski (1835-1880), ao compor seu álbum "L'école Moderne" opus 10 com dez Caprichos em meados do séc. XIX.


Contudo, a escola francesa não se impôs espontaneamente no meio cultural
europeu pelo mero reconhecimento artístico, mas pela força ideológica-política. Tinha, sim, um método eficiente e dezenas de alunos organizados cultivando os mesmos ideais. Ainda mais importante, a expansão imperial francesa a partir de 1804 semeou, pela Europa, a cultura militar parisiense. Maiko Kawabata percebe que o Conservatório de Paris foi um produto direto da Revolução Francesa, originalmente sendo uma instituição para
o treinamento de instrumentistas para bandas militares.
Era enorme a influência dos professores franceses inclusive no exterior. Spohr
apresentou o Quarteto de Rode em Mi maior (na realidade, para violino solo com acompanhamento de trio) mais do que qualquer outra obra em suas turnés na primeira década
do séc. XIX. O famoso artigo de Boris Schwarz (1958) é rico em exemplos mostrando a influência decisiva de Viotti e de seus alunos nos concertos e sinfonias de Mozart e de Beethoven. Mesmo Paganini tocou concertos franceses no início de suas turnés, quando ele tinha apenas dois concertos próprios. As primeiras apresentações de Paganini em Viena e Paris foram com os concertos de Rode e Kreutzer, numa visível estratégia para ganhar a
simpatia do público local.


Paganini estudou e apresentou obras da escola francesa, e assim foi obviamente
influenciado pela escola de Viotti, mas levou as exigências técnicas para um novo
patamar. Se os compositores da escola francesa estavam primeiramente mais
interessados no solista, Paganini e os concertistas "heróicos" de meados do séc.
XIX ameaçavam cobrir a orquestra apesar do efetivo maior geralmente usado no
concerto romântico.
Baillot reconhecia o destaque de Niccolò Paganini (1782-1840):
Desde o início, vimos que sua maneira de tocar violino foi particular e que tinha
pouca semelhança com qualquer outro virtuoso. Tal diferença dava-lhe o
entusiasmo da novidade, ainda que esse estilo seja quase que inteiramente
fundamentado no uso de certas dificuldades que estiveram em voga antes, como
harmônicos, pizzicato e scordatura, mas que caíram em desuso por muito tempo.
Na verdade, Paganini adicionou mais alguns efeitos a estes: ele tem feito
tanto com harmônicos duplos e com o uso exclusivo da corda Sol, que o violino,
em suas mãos, torna-se um instrumento diferente, assim como o próprio artista
conquistou uma posição fora do comum. 



O prestígio dos professores franceses era tão grande, que Baillot não se
preocupava em apresentar obras dos seus rivais. Charles Dancla,
comenta que Paganini não poderia tocar o quarteto de Mozart ou o septeto de
Beethoven como Baillot, e que Baillot também evitava tocar músicas de Paganini, não pela falta de técnica, mas porque seu temperamento o fazia evitar o que chamava de grandes excentricidades. Baillot preferia ensinar os clássicos, tomando como exemplo as obras dos professores consagrados além de contribuições suas e de seus colegas. Seu método objetivava o desenvolvimento da inteligência e o treino do julgamento para não destruir todos os esforços do trabalho e da paciência. Ele criticava os professores que encurtavam métodos,
confundindo-os com métodos concisos.
A importância dos professores do Conservatório de Paris superou a grandeza e o brilho da Orquestra da Real Câmara de Lisboa, uma das melhores, mais numerosas e mais bem pagas da Europa entre os anos de 1764 e 1834, que sofreu certo declínio na contratação de músicos durante o período da permanência da corte portuguesa no Rio de Janeiro entre 1808 e 1822. Percebe-se, contudo, que a orquestra de Lisboa não formou uma escola dominante, ao contrário do fenômeno do Conservatório de Paris.


Pode notar-se que mudanças técnicas estão diretamente ligadas a alterações de ideais. Por exemplo, o ideal sonoro maior, seja por diferenciação de potência ou de timbre, gerou concomitantemente várias pequenas alterações técnicas nas cordas, no violino e no arco.
Uma conclusão notável é que a transição da escola antiga para a moderna foi
gradual e contínua, sem rupturas, até mesmo na polêmica questão de segurar o violino com o queixo. Por isso, a fundação do Conservatório de Paris reiniciou a genealogia acadêmica do violino no século XIX, de modo que todas as escolas modernas se originam de Baillot. Já a restauração da técnica do uso do violino sem o queixo, conhecida internacionalmente como "chin off", e a sua manutenção pela escola de Sigiswald Kuijken no final do séc. XX, cria uma
oposição anacrônica inédita na história do violino, cuja discussão pode abrir uma nova linha de pesquisa.

fonte:  ZOLTAN PAULINYI
Flausino Vale e Marcos Salles: influências da escola franco-belga em
obras brasileiras para violino solo

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