A moderna escola de violino cultivada no Conservatório de Paris
do século XVIII
O
final do século XVIII teve a produção musical polarizada em Viena e Paris, que mantiveram
contínuo contato artístico. Enquanto a escola austríaca era centrada em compositores
mais ligados ao piano, como Haydn, Mozart, Beethoven, Schubert, entre outros, a
escola francesa agrupou-se em violinistas descendentes da antiga escola de
Gaviniés, Lully e Rebel fundida com a tradição de Corelli e Tartini .
O
mérito desta conexão das escolas francesa e italiana é de Giovanni Battista
Viotti
(1755-1824), discípulo de Pugnani, ao lado do qual iniciou brilhante carreira internacional
como concertista. Conquistou a admiração instantânea dos franceses após um ano
e meio de concertos em Paris em 1782, quando inexplicavalmente decidiu se
aposentar do palco. A partir do início de 1784, Marie Antoinette ofereceu-lhe
generosa pensão em Versailles para conduzir diversas orquestras e ensinar a
arte do violino. Quando a Revolução
o
forçou a se mudar para Londres em 1792, já tinha formado um grupo de
violinistas talentosos e idealistas que fundariam o Conservatório de Paris. Por
isso, Viotti é considerado o pai da moderna escola francesa de violino. Ele
acrescentou seu gênio pessoal aos ensinamentos de Pugnani, desenvolvendo um
novo estilo que aproveitava todas as qualidades do novo arco Tourte e dos
melhoramentos externos do violino: cordas mais grossas, braço mais comprido e
anguloso, barra harmônica e alma mais grossas, desenho diferente do
cavalete.
O
Conservatório de Paris foi fundado no dia 18 de brumário do ano II (8 de
novembro
de 1793), em substituição à denominação "Instituto nacional de
música" de 1792 sob inspiração de ideais gregos e romanos, objetivando o
ensino público e gratuito de música e também exaltando a arte musical militar
de Paris. O Conservatório de Paris reuniu importantes alunos diretos de Viotti
em seu corpo docente, principalmente Rode e Kreutzer, entre dezenas de outros
menos expressivos. Liderados por Baillot, os três publicaram um método de
violino em 1802 que incorporou os recursos técnicos em uso atualmente. Aquele
método foi rapidamente difundido pela Europa, formando violinistas bem sucedidos
em vários países. Os violinistas franceses eram, também, autores do próprio repertório,
incluindo significativo número de concertos para violino e orquestra, muita literatura
solo e também música de câmara. A partir do século XIX, conhecemos vários estudos
e álbuns para violino solo publicados pelos violinistas compositores franceses
do Conservatório de Paris, bem como os famosos Caprichos de Paganini, formando
um conjunto
de
obras que marcam os estudos pessoais de muitos violinistas.
Pierre
Marie François de Sales Baillot (1771-1842) foi violinista e compositor
parisiense.
Em 1783, devido à morte de seu pai, foi enviado à Roma por M. de Boucheporn para
estudar violino com Pollani, aluno de Pietro Nardini (1722-1793). Em 1791,
iniciou a carreira em Paris com ajuda de Viotti e formando amizade estreita com
Rode. Estudou composição com Catel, Reicha e Cherubini. Após apresentar um
concerto de Viotti, conquistou um cargo de docência temporária no recém fundado
Conservatório de Paris em 1795, assumindo oficialmente em 1799. Depois disso,
foi bem sucedido em turnés pela Europa e Rússia. Liderou a
Orquestra da Ópera de Paris entre 1821 e 1831. Também liderou a orquestra da
Chapelle Royale a partir de 1825. Ele é responsável pela redescoberta da música
antiga, principalmente de J.S.Bach, Barbella, Corelli, Germiniani, Handel e
Tartini. Baillot foi o grande incentivador da introdução da música de câmara no
currículo do Conservatório de Paris. No entanto, ele não conseguiu isso
pessoalmente, mas somente por meio de seu filho René, que inaugurou a catédra
de música de câmara em 1848. Antes disso, o gosto musical parisiense preferia a
ópera, as apresentações virtuosísticas e orquestrais. Mesmo nas formações de
quarteto, o primeiro violino
geralmente tocava em pé para destacar-se do restante do grupo.
O
método de violino elaborado por Baillot, Rode e Kreutzer em 1802 para uso no Conservatório
de Paris serviu de modelo para outros conservatórios; um ótimo exemplo é a
tradução ao italiano dedicada a Alessandro Rolla (1757-1841), compositor,
violinista, violista, regente e fundador do Conservatório em Milão em 1808, que
provavelmente utilizou o bem sucedido método da instituição francesa em suas aulas
de violino e viola (ROSTAGNO, 2001). Rolla é conhecido por ter encaminhado Paganini
(1782-1840) ao professor Gaspare Ghiretti em 1795 em Parma.
O
método de violino do Conservatório exalta a antiguidade do instrumento, o
caráter
divino do seu som e todos os recursos técnicos e artísticos que o violino
consegue mostrar. Logo em sua introdução, o método incentiva a perseverança do
aluno a desenvolver sua sensibilidade e entendimento; recomenda a formação do
bom gosto pela busca diária da perfeição ideal pelo artista dotado de um
espírito reto e imaginação ardente; adota a regra de que o verdadeiramente belo
é tudo que toca o coração; adverte, no artigo VII, que não adianta meramente
segurar corretamente o violino e o arco, mas que o corpo deve ter uma atidude nobre
e harmoniosa que favoreça o desenvolvimento
de todos os meios musicais. Contudo, nota-se um amadurecimento em Baillot após
mais de quatro décadas de docência, quando finalmente considerou que "beleza torna-se sinônimo de bom para o artista", o que se aproxima
muito da definição aristotélica-tomista de que a beleza é
expressão
inteligível do bem.
O
método do Conservatório de Paris propõe vários tipos de ideais (na maioria
ideais
artísticos), principalmente pelos exercícios que favorecem o desenvolvimento de
um som forte, limpo e uniforme do talão até a ponta do arco. Para isso, sugere
exercitar a produção sonora de três maneiras:
1)sustentar
o som com toda a força: os dedos da mão direita devem contribuir na compensação
da pressão do arco sobre a corda à medida que o ponto de apoio sobre a corda se
desloca.
2)
buscar um som fraco: sustentando o arco levemente sobre a corda,
abandonando-o
à medida que se chega à ponta.
3)
crescer, diminuir e modificar o som.
Estes
itens não são óbvios quando confrontados com a escola antiga. Os dois
primeiros
itens favorecem o bom desenvolvimento da musculatura da mão direita.
Entretanto, o método apenas define a gradação de som como sendo a gradação de
força, mas nada revela a respeito do equilíbrio do ponto de contato e da
velocidade do arco sobre a corda.
Certamente,
o método não serve para auto aprendizagem, nem foi feito para esta finalidade: requer
supervisão e explicações do professor. Baillot foi muito respeitado pelo
domínio técnico geral, fato que não o salvou de críticas de Spohr: ao mesmo
tempo em que exaltava sua execução impecável, reclamava que "o mecanismo
da mudança de arcada era de algum modo muito audível".
Depois
de algumas décadas lecionando, Baillot escreveu seu maduro tratado sobre a arte
do violino, que incorpora o método do Conservatório de Paris (principalmente na
segunda parte do livro). Seu ensino baseou-se em três etapas:
1)
a instrução da definição com exemplo do professor,
2)
propostas de exercícios técnicos resumidos em fórmulas,
3)
por último, a aplicação de todos os princípios no repertório do Conservatório
de
Paris.
Lefort
e Pincherle, salientam a proposta de grande abertura
metodológica
de Baillot, fato que costuma ser modernamente olvidado em salas de aula:
"Nós trabalhamos na boa-fé de impedir os estudantes confiados aos nossos
cuidados a se tornarem prisioneiros de uma escola, procurando dar à própria
escola a maior extensão possível e a deixar aos alunos a maior liberdade de
desenvolvimento." Além da profunda abordagem da técnica violinística e de vários
assuntos correlacionados, o tratado de Baillot mostra um
enorme
esforço de padronização da notação musical e violinística, no qual ele lembra
que a técnica está a serviço da arte. A expressão consiste em realizar com
energia todas as ideias e sentimentos que se quer manifestar. No violino, a
verdadeira expressão depende:
1)
da qualidade do som;
2)
do movimento, referindo-se ao andamento da música;
3)
do estilo, referindo-se à maneira de exprimir;
4)
do bom gosto: é ao mesmo tempo um dom da natureza e fruto da educação;
5)
da precisão rítmica: fundamental, apesar de que alterações na pulsação possam ser
necessárias para a expressão.
6)
do gênio de execução: saber mostrar o diálogo entre os instrumentos e a
expressão
de cada parte da música.
Apesar
do sistema de conservatórios ter-se originado na Idade Média, a criação do Conservatório
de Paris tinha como propósito mais do que preparar alunos: unir, em um só corpo
de princípios, as bases de todos os diversos ramos de instrução, aproximando-se
à definição de escola usada neste estudo. Um dos primeiros a identificar na
consolidação dos ideais do Conservatório de Paris um paradigma moderno foi Wieniawski
(1835-1880), ao compor seu álbum "L'école
Moderne" opus 10 com dez Caprichos em meados do séc.
XIX.
Contudo,
a escola francesa não se impôs espontaneamente no meio cultural
europeu
pelo mero reconhecimento artístico, mas pela força ideológica-política. Tinha,
sim, um método eficiente e dezenas de alunos organizados cultivando os mesmos
ideais. Ainda mais importante, a expansão imperial francesa a partir de 1804
semeou, pela Europa, a cultura militar parisiense. Maiko Kawabata percebe que o
Conservatório de Paris foi um produto direto da Revolução Francesa,
originalmente sendo uma instituição para
o
treinamento de instrumentistas para bandas militares.
Era
enorme a influência dos professores franceses inclusive no exterior. Spohr
apresentou
o Quarteto de Rode em Mi maior (na realidade, para violino solo com acompanhamento
de trio) mais do que qualquer outra obra em suas turnés na primeira década
do
séc. XIX. O famoso artigo de Boris Schwarz (1958) é rico em exemplos mostrando
a influência decisiva de Viotti e de seus alunos nos concertos e sinfonias de
Mozart e de Beethoven. Mesmo Paganini tocou concertos franceses no início de
suas turnés, quando ele tinha apenas dois concertos próprios. As primeiras
apresentações de Paganini em Viena e Paris foram com os concertos de Rode e
Kreutzer, numa visível estratégia para ganhar a
simpatia
do público local.
Paganini
estudou e apresentou obras da escola francesa, e assim foi obviamente
influenciado
pela escola de Viotti, mas levou as exigências técnicas para um novo
patamar.
Se os compositores da escola francesa estavam primeiramente mais
interessados
no solista, Paganini e os concertistas "heróicos" de meados do séc.
XIX
ameaçavam cobrir a orquestra apesar do efetivo maior geralmente usado no
concerto romântico.
Baillot
reconhecia o destaque de Niccolò Paganini (1782-1840):
Desde
o início, vimos que sua maneira de tocar violino foi particular e que tinha
pouca
semelhança com qualquer outro virtuoso. Tal diferença dava-lhe o
entusiasmo
da novidade, ainda que esse estilo seja quase que inteiramente
fundamentado
no uso de certas dificuldades que estiveram em voga antes, como
harmônicos,
pizzicato e
scordatura,
mas que caíram em desuso por muito tempo.
Na
verdade, Paganini adicionou mais alguns efeitos a estes: ele tem feito
tanto
com harmônicos duplos e com o uso exclusivo da corda Sol, que o violino,
em
suas mãos, torna-se um instrumento diferente, assim como o próprio artista
conquistou
uma posição fora do comum.
O
prestígio dos professores franceses era tão grande, que Baillot não se
preocupava
em apresentar obras dos seus rivais. Charles Dancla,
comenta
que Paganini não poderia tocar o quarteto de Mozart ou o septeto de
Beethoven
como Baillot, e que Baillot também evitava tocar músicas de Paganini, não pela falta
de técnica, mas porque seu temperamento o fazia evitar o que chamava de grandes
excentricidades. Baillot preferia ensinar os clássicos, tomando como exemplo as
obras dos professores consagrados além de contribuições suas e de seus colegas.
Seu método objetivava o desenvolvimento da inteligência e o treino do
julgamento para não destruir todos os esforços do trabalho e da paciência. Ele
criticava os professores que encurtavam métodos,
confundindo-os
com métodos concisos.
A
importância dos professores do Conservatório de Paris superou a grandeza e o brilho
da Orquestra da Real Câmara de Lisboa, uma das melhores, mais numerosas e mais bem
pagas da Europa entre os anos de 1764 e 1834, que sofreu certo declínio na
contratação de músicos durante o período da permanência da corte portuguesa no
Rio de Janeiro entre 1808 e 1822. Percebe-se, contudo, que a orquestra de
Lisboa não formou uma escola dominante, ao contrário do fenômeno do
Conservatório de Paris.
Pode
notar-se que mudanças técnicas estão diretamente ligadas a alterações de
ideais. Por exemplo, o ideal sonoro maior, seja por diferenciação de potência
ou de timbre, gerou concomitantemente várias pequenas alterações técnicas nas
cordas, no violino e no arco.
Uma
conclusão notável é que a transição da escola antiga para a moderna foi
gradual
e contínua, sem rupturas, até mesmo na polêmica questão de segurar o violino
com o queixo. Por isso, a fundação do Conservatório de Paris reiniciou a
genealogia acadêmica do violino no século XIX, de modo que todas as escolas
modernas se originam de Baillot. Já a restauração da técnica do uso do violino
sem o queixo, conhecida internacionalmente como "chin off", e a sua manutenção pela escola
de Sigiswald Kuijken no final do séc. XX, cria uma
oposição
anacrônica inédita na história do violino, cuja discussão pode abrir uma nova
linha de pesquisa.
fonte: ZOLTAN PAULINYI
Flausino Vale e Marcos Salles: influências da escola franco-belga em
obras brasileiras para violino solo
Flausino Vale e Marcos Salles: influências da escola franco-belga em
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